terça-feira, 4 de agosto de 2009

Antônio


Provou, podia ser tão forte quanto as muralhas da China. Sempre esteve lá. Areia sobre areia, sob folhas sobre o chão. Onde pisaram filhos, casaram e morreram todas as mães da família. Era também esfinge. Voltava dos quatro cantos da terra, cria ávida em descobrir respostas. Estava lá, uma religião, um templo. Sagrado aos descendentes. Eram devotos da grande mangueira de tronco forte e sombra larga. Rezavam para o fruto não ter fim. Manga rosa. Roseira branca.
Hoje é pó.
Grades cinza, cerca de pau quebrado. Cerca nua. A disputada divisão entre as nossas e as terras vizinhas se tornou invisível. Não havia vizinhos. Depois dos anos de peste, dos tempos de separação, durante mais de uma década não se soube notícias do lugar. Nós, irmãos, não nos soubemos nem nos sentimos, porque era necessário e inevitável.
Sabíamos ser mais confortável que as visitas à velha casa, ocorressem em separado, e isso foi determinado no último dia que nos vimos. Voltaríamos de ano em ano no dia de aniversário de cada um de nós. Cinco irmãos, a culpa distribuída igualmente, caracteristicamente, solenemente. Fazíamos disto ritual místico de significado só nosso.
Estava lá. Pequeno berço, beco estreito onde nos esbarrávamos. Simulacro de felicidade e dor. Esbarrava em lembrança de alguém e pensava ser minha. Lembrança de bola e algodão doce. Memória de roubar caju. Memória coletiva de criança brincando junto. Juntos fomos felizes e desesperadamente tristes. A tristeza veio depois da maior alegria de nossas vidas. Papai recuperou a casa que estava hipotecada. Três dias de festa. Casamento de Margarida, irmã mais velha, quase mãe. Era festa de São João. Fogueira acesa, fogos, muito vinho.
Eu era menino, quase homem, dezessete. Nunca tinha estado com mulher. Não era bem o que eu queria. Ainda negava os desejos. Dormia pensando nos homens negros, dormia enrijecido pensando no suor dos homens negros. Nunca fui afeminado. Não sou. Gosto de homens e gosto de ser homem. Sempre fui de briga. De lavar a honra de minha mãe quando chamada de puta em jogo de futebol.
Antes de mim, Januário. Queria estudar Direito, cursar a Faculdade de Direito do Recife e ser gente, palavras dele. Pensava em dinheiro grande, em viajar para os Estados Unidos, em ser patrão, em ter carro com motorista, em comprar o que quisesse. Em ser feliz e rico.
Antes de Januário, Glorinha. O defeito na perna sempre a deixou insegura. Mesmo quando Carlos, filho de parente distante lhe pediu a mão. ”Só pode ser doido, casar com uma manca” - afirmava. Era linda.
Antes de Glorinha, Joca. Parecia mais velho e dizia que tomaria conta da granja do pai. O pai não acreditava muito. Joca era meio doido. Nunca aceitou os remédios, nunca quis casar pra não dividir a herança com mulher interesseira.
Antes de Joca, Margarida, que foi mãe. Porque a mãe esteve doente. Mamãe não nos viu crescer. Doença que paralisa, algo de praga rogada.
Margarida ia casar.
Casou.
É provável que mesmo antes de se tornar mulher, a casa já estivesse pegando fogo.
Foi acidente que só acontece em festa. Quando algum bêbado, não se sabe quem, destrói a vida de muitos. Algum bêbado andando torto levou fogo onde não devia. As primeiras a queimar foram as cortinas da grande sala. Os tapetes ainda receberam água na tentativa de segurar chamas impossíveis.
Naquela noite entendi o que sentia minha mãe. Entendi a paralisia, a inércia, estava estático. Lembro pouco. Apenas de tudo ser festa e num minuto, fumaça. Dos gritos de Glorinha pra salvar o álbum de família. Dos homens da casa tirando água do poço. Baldes passando de mão em mão.
- Antônio! Acode!
Gritavam por mim.
- Vira homem Antônio, o pai tá morrendo!
- Morrendo?
Morreu.
Pensei que o fogo também nos mataria. Não matou. O fogo se foi de repente. Só matou meu pai de fumaça. E tirou nossa alma.
Qualquer união que tivéssemos se foi junto com a última faísca. Da casa só restou paredes, alguns móveis pela metade. Minha mãe já nem falava e com três dias também se foi. Eu era estranho. Fui construído daquela casa, da caliça, reboco, das pinturas de fim de ano. Da mesa de madeira de lei, do piano de cauda do meu avô, palco dos porta-retratos da família. Arrancou-se a pele que me vestia. Carne viva, meus irmãos e eu tivemos que nos dispersar. Quanto mais longe do que éramos, melhor nos costuraríamos.
Quase homem, me joguei por muitos dias num quartinho no Velho Recife. Era o que podia pagar com o dinheiro recebido na divisão da venda das galinhas de meu pai, herança que restou. Era 1961, e durante quase cinco anos pensava em voltar, desejava reconstruir a vida no bairro onde nasci. Recife se formava em prédios. A cada janeiro a esperança se renovava, a cada dezembro morria com o resto de mim. Fui esquecendo entre putas e gigolôs que eu era Antônio de Jacira e José.
Descobri que a reinvenção de nós mesmos pode ser uma dádiva. Percebi as possibilidades. Podia ser quem quisesse, brincava com isso. Eu era Paulo, Roberto, Jorge, João. Eu era Antônio, e podia dormir com todos eles, me apaixonar por alguns. Gostei. Sofri. Aos vinte e cinco já era vivido. Tinha feito de tudo, acumulado dinheiro, prazer e dor. Casei dois anos depois. Fui morar em Mustardinha com Cristina, única mulher que me atraiu. Lembrava Margarida - hoje perto dos quarenta, deve estar cheia de filhos - lembrava algo que perdi. Senti por algum tempo que não havia passado nem futuro. Eu era estéril.
Nunca houve noite que não sonhasse com a casa, não houve pesadelo que não fosse fogo. Não havia esquecido de nosso trato, voltar de ano em ano. Era hora.
E foi.
Faria 30 anos. Três dias para estar em casa. E nesses dois dias de espera, um tempo tonelada. Pesavam os centésimos. Quilos de horas de chumbo. Cristina aliviava meu terror.
- Pra onde vamos?
- Buscar respostas.
A Casa fica em Dois Irmãos. Longe de tudo que é. Terra boa, de chão firme e tempo úmido. Terra que planta cresce sem demora. Todo mato está em volta dela. As trepadeiras cuidadosamente podadas por meu pai viraram partes dos restos de parede, segurança para que não caiam de vez. Os galhos da grande mangueira já se misturam com a sala e tudo parece um jardim secreto. Flores brotaram do chão de madeira oca. Uma casa de pássaros, é o que é.
Seguro a mão de Cristina, aperto e por alguns minutos penso que o corpo não agüentará. Ela me aperta ainda mais forte como se estivesse só agora me conhecendo melhor. Acalmo. Sinto cheiro de minha mãe. Cheiro de lençol lavado, de cama de senhora mãe. Cheiro de identidade descoberta. Cheiro de irmão. Sinto todos. Pai, grito de pai, do grito que manda na gente. Saudade da galinha, do milho. Margarida cantando para as flores nascerem mais. Sinto margarida. Mãe. Pai.
- Pergunta.
- Vim pra isso e não tenho coragem.
Ela me olha.
Digo:
- Vou entrar até o fim.
- Te deixo só.
- Deixa.
Estou indo.
Passo por onde ficava o piano. Toco um lá que não existe mais. Toco as paredes. Piso nas lembranças do tapete de Vó Amélia. Tapete de couro cru, do mesmo couro das botas de Pai José. Botas de domingo. Eu vejo as botas. Estão aqui as pegadas de barro molhado, de quando o pai entrava em casa depois de aguar a roseira branca. O cheiro das rosa que entrava com ele. O cheiro dele. O cheiro do Recife desabitado. Ouço vozes :Perdoa o destino, Antônio. E num susto fico livre para o futuro.

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